meu avô

Laura Emerim
3 min readSep 1, 2022

Dezesseis de maio de 2021 encontrei meu avô. Ele com uma doença sem cura, eu com uma passagem só de ida para aquela semana. Eu sabia que aquela vez seria a última, imagino que ele soubesse também.

Cheguei cedo em sua casa para poder colocar o papo em dia antes do resto da família chegar para a nossa tradicional pizza de domingo.

Conversamos sobre o falecido do dia e a política nacional. Conversamos sobre o Rio, meus planos pra cidade que tinha sido dele e seu passado na cidade que viraria minha, uma aventura em dois tempos. Conversamos sobre o Botafogo e os botafoguenses (são fáceis de se lidar com, porque se aguentam tantas derrotas do time, aguentam qualquer coisa). Conversamos sobre a escrita, descobri que ele já tinha sido até redator de jornal. Conversamos sobre seu boletim da escola (um sonho: que fosse possível pular o colégio e a faculdade e se formar direto, queria o Orlando de sete anos). Conversamos sobre os artistas que amamos e seus shows (de quando o Tim Mais cancelou o show e ele acabou saindo no lucro). Conversamos sobre FreeCell (que ele não me deixava jogar no seu computador, para não estragar as estatísticas quase perfeitas).

Ouvimos e cantamos junto sua playlist de músicas nacionais (sua companhia das sessões de quimioterapia), e, enquanto o Milton cantava Travessia eu te falei “ah, melhor você não pegar carona com ele, ele solta avós nas estradas” e você gargalhou (viveria em remorso se não tivesse te contado essa antes de você ir). Pintei seu carrinhos (nos últimos meses ele havia desenvolvido um apreço por compras online e, fruto disso, um projeto de comprar a miniatura dos carros que haviam sido da família (pintando com esmalte os que não encontrasse na cor correta) e escrevendo um parágrafo sobre).

Era a última vez que nos veríamos mas agimos como se fosse um domingo qualquer. E não digo isso de forma negativa, como em “deveríamos ter aproveitado mais!” e sim como quem sabe que o amor sempre esteve presente e foi demonstrado a cada encontro, cada pizzada, cada telefonema terminado com “te amo”. Desde a época em que ele colocava meus pézinhos dentro da bisnaguinha e fingia que ia comer, nunca tivemos dúvida do amor um pelo outro.

Compartilhamos o gosto pela escrita, pelo registro constante dos momentos (em seu computador, milhares de fotos catalogadas em pastas, que ele exibia sem filtro algum em sua tv-porta-retrato), pelas viagens e por ficar em casa. Infelizmente, também temos traços negativos em comum, como o fato de que às vezes falamos de forma grossa e estúpida com as pessoas que mais amamos. Não dá para ganhar sempre.

Meu vô sempre esteve consciente da brevidade da vida e de que as coisas são escolhas (“prefiro continuar fumando e viver cinco anos a menos”), sem fatalismos. Curtiu a vida muito, sem deixar de estar ciente dos privilégios que possibilitaram isso. Com o câncer e depois com a covid (“como se torcer pro botafogo e ter o nosso presidente já não bastasse”), fomos, a gente e ele, nos preparando para a despedida.

Estava preparada para a despedida mas não para o depois. Como escrevi em outro texto, o mais difícil do velório é quando ele acaba. Esses dias vi um vídeo sobre o Raul Seixas e pensei “vou mandar pro vô, ele vai gostar” e demorei alguns segundos para me dar conta. Ainda acho estranho deixar as bolachas de chopp sobre a mesa em vez de levar pra sua coleção. Não me acostumei com não ter opiniões sobre as minhas coisas, mas tenho certeza que estaria orgulhoso.

Vovô, a sua morte foi sem dúvidas a coisa mais doída que já me aconteceu, mas isso era inevitável. Não penso em nada que pudéssemos ter feito diferente, pelo contrário, fico feliz por termos tido tanto tempo! Na sua playlist, a última adição foi “Gracias a la vida” (a versão com a Joan Baez, porque a que eu tinha te mostrado, com os brasileiros que amamos, não tinha no aplicativo) e a última mensagem que eu recebi sua foi “Te amo”. Estar contente com a vida que se viveu e saber que demonstrou seu amor pelas pessoas, é assim que espero partir também.

Feliz aniversário!

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